"Espectros Opostos" de Iria Alexandra Cardoso | Apontamentos da Alma

Olá, sussurros!

Como estão nesta semana repleta de calor? Bem? Mal? Bebam muita água e usem e abusem da sombra e do protector solar.

Ora, hoje, trago-vos algo diferente.

Como devem saber, eu participei numa antologia da Chiado Books há um ano atrás, livro que saiu em Dezembro passado. Por isso, e para vos dar algo diferente aqui no blog, decidi postar o texto que escrevi.



"Espectros Opostos" de Iria Alexandra Cardoso Maio 2019)

Existiu uma época, tão sombria como o nascimento do mundo. A escuridão imperava e o medo fazia parte da vida humana.
Um sábio, de nome Lázarus, decidiu embarcar numa jornada que mudaria para sempre o destino do mundo.
Nas suas viagens para encontrar os saberes ocultos que os deuses e os seus intermediários haviam escondido dos Homens, Lázarus encontrou uma gruta solitária numa terra árida, onde poucos ousavam entrar. Dizia-se que um Poder antigo havia destruído tudo aquilo que considerara inferior.
Na gruta, Lázarus encontrou algo para o qual nem os seus estudos o tinham preparado.
No princípio usara-o para o bem, ajudando os fracos e desprotegidos, trazendo paz a terras distantes, ajudando-o a compreender os mistérios ocultos. Todavia, o Poder submergiu o coração do sábio na escuridão. A indomável influência tornou a sua figura altiva e luminosa, contraída e sombria. Quando os seus sábios colegas o tentaram ajudar, Lázarus já se tinha tornado num outro ser e ao manifestar a sua escuridão, destruiu todos aqueles que se lhe opuseram e subjugou os restantes, transformando-os no seu exército demoníaco.
A desgraça caiu sobre os reinos e gerações inteiras foram perdidas para a escuridão.
Até ao dia em que Lázarus desapareceu. As terras voltaram a ter paz e a luz prosperou sob o olhar vigilante dos seus governantes.
Até um dia…
Ele está a chegar…” Falou a voz espectral da Oráculo. “A escuridão feita homem, a guerra feita carne, acordou e os demónios saíram da sua toca.
O rei deixou-se cair no seu trono, o seu olhar claro fitava a mulher caída a seus pés.
César acabara de se tornar soberano de Kallys após a morte do seu pai no campo de batalha a combater um exército que todos haviam descrito como seres vindos de Hades.
- Temos de pedir ajuda aos Sábios. – Proferiu Dário, um dos seus amigos e conselheiros mais antigos. – Só eles nos poderão dizer o que fazer, César.
- Eles afastaram-se das nossas terras depois do que aconteceu há trezentos anos. – César indagou com desdém.
- Foi um deles que causou a Grande Catástrofe e agora está de volta, César.Eles são a nossa única alternativa.
O jovem rei suspirou, olhando do amigo para a Oráculo.
- Há algo mais nas tuas visões? – Indagou, suavemente. Sabia que a sua irmã mais nova não gostava de ser inquirida depois de uma profecia, escolhendo afastar-sede companhia. Todavia, ela ainda se encontrava ali, o que significava que o assunto era sério.
- Dário tem razão, irmão. Os Sábios não se podem esconder mais. – A voz rouca de Fabíola fez-se ouvir ao aproximar-se do irmão. – Tens de ir a Ieró, implorar pela sua ajuda.
O olhar azul do rei fitou o igualmente azul da irmã. Havia algo que ela não lhe estava a dizer, mas era sempre assim com as Oráculos. Nunca diziam tudo.
Alguns dias mais tarde, César e a sua comitiva miraram a fortaleza solitária, erguida na ilha de Ieró, longe dos olhares dos Homens. Quando saíra de Kallys, o jovem rei não sabia o que iria encontrar. Havia apenas os escassos relatos dos pescadores aquando da sua chegada à costa. Nada nem ninguém entrava na ilha, nada nem ninguém saía da ilha.
O olhar azul estudou a fortaleza. Robusta, muralhas altas, ameias largas o suficiente para que alguém a defendesse. E foi aí que o seu olhar capturou algo diferente. Uma mulher de olhar que inspirava desafio. Aquela expressão fê-lo sorrir e algo na expressão da mulher mudou, surpreendendo-o. Contudo, ao voltar o olhar de novo para a ameia, ela já lá não se encontrava.
Ao chegarem ao porto de Ieró, César ajudou os seus marinheiros a atracar o navio, deu ordens aos membros da comitiva que esperassem por ele. Apenas pediu a Dário que o acompanhasse e dirigiu-se ao homem de vestes negras que se encontrava à sua espera.
- Bem-vindo, Rei César. O meu nome é Gregório, Mestre Supremo da Ordem Prudens. Posso perguntar o que vos traz a Ieró? – Indagou o Sábio.
- Escuridão e demónios, Mestre Gregório.
O Sábio assentiu, entrando na fortaleza. César e Dário seguiram-no pelos frios corredores até uma sala iluminada por altas e largas janelas. Outros Sábios já lá se encontravam e sentaram-se aquando da chegada do seu Mestre e dos seus convidados.
- Primeiro, gostava de oferecer as nossas condolências, Majestade. Sabemos que o seu pai era um rei bom e sábio.
- Obrigado. – César assentiu com um olhar doloroso.
- A catástrofe para a qual procura solução tem o nome de Lázarus. De certo que sabe o que aconteceu há trezentos anos? – Quando César assentiu, Gregório continuou.
- Vão ajudar-nos? – Interrompeu Dário, esperançoso.
Gregório anuiu, silencioso.
- Nada entra ou sai da ilha, como sabem o que se passa? – César inquiriu, curioso.
- Vossa Majestade, nem tudo foi perdido quando um dos nossos destruiu a nossa sábia Ordem. – O Sábio ofereceu um sorriso enigmático.
Entre discussões e pedidos, entre planos e estratégias, a conversa fluiu. Os Sábios sabiam que não podiam ignorar a ameaça vinda das profundezas da memória. E sabiam que era apenas juntando-se aos Homens que poderiam destruir a escuridão.
- Sei que a vossa viagem foi longa. Por que não terminamos por hoje, Vossa Majestade? – Perguntou Gregório, ao fim de longas horas. – Temos aposentos para os seus acompanhantes. De certo que a manhã poderá trazer algo mais à nossa mesa.
Algo na expressão do Sábio fez César concordar e depois do jantar ter sido servido e dos aposentos terem sido apresentados, o jovem rei decidiu deambular pela cidadela e aproveitar o ar fresco da noite para reflectir sobre os eventos do dia.
A certa altura, um barulho chamou-o à atenção. Quando se aproximou do campo de treinos, viu a mulher dessa manhã. O seu corpo fluía, os seus movimentos naturais e o seu rosto não demonstrava qualquer tipo de cansaço ao derrotar cada um dos seus oponentes.
- Estou impressionado.
Tanto a mulher como os seus companheiros de treino estacaram, olhando para César.
- Se desejar um companheiro à altura, estou disponível, minha senhora.
- Estou bastante contente com os meus companheiros, obrigada, Majestade.
César devolveu um sorriso amistoso, quase atrevido. Retirou a espada da bainha e empunhou-a na direcção da mulher. O olhar esverdeado, reparou ele, quase sorriu antes de começar a troca de faíscas entre espadas.
O combate durou alguns minutos até o jovem rei fazer a dama guerreira tropeçar e encostar a lâmina à sua garganta delicada. Os olhares fitaram-se, avaliando-se.
 - Tem a certeza de que ganhou, senhor? – O sorriso fez-se ouvir na voz suave.
- Com toda a certeza, senhora.
A mulher fez um gesto com o olhar que fez César voltar o seu para baixo. Uma pequena adaga encontrava-se perigosamente perto das suas virilhas.
O jovem rei riu, afastando-se da guerreira e embainhando a espada. Ainda antes de oferecer a sua ajuda, já ela se erguia.
- Obrigada pelo treino. – Ela fez um suave movimento com a cabeça.
- Ainda não me disse o seu nome, senhora.
Sorrindo, a mulher teve a audácia de encolher os ombros e desaparecer na escuridão dos corredores frios da fortaleza.
Na manhã seguinte, César relembrava o combate da noite anterior enquanto ouvia os Sábios e os seus conselheiros discutirem o que deveriam fazer agora que sabiam que mais uma cidade de Kallys havia sido destruída pelas forças de Lázarus.
A certa altura, as portas da sala abriram-se. Uma mulher altiva, envergando um vestido azul noite, dirigiu-se a Gregório.
- Penso que já é altura de me juntar à reunião, Mestre.
O guerreiro viu o Sábio assentir, não compreendendo o que estava a acontecer.
- Majestade, deixe-me apresentar a Senhora Íris, nossa protegida.
- Já nos conhecemos, Mestre. – Falou a guerreira, fitando César de forma ousada.
- A Senhora Íris é nossa protegida por uma razão. Há vinte e cinco anos atrás, uma outra Oráculo profetizou a queda da escuridão. Nessa altura, não compreendemos o que ela queria dizer. Pelo menos não até o último Dragão remanescente da Grande Catástrofe nos trazer uma bebé. Uma bebé que teria o poder da luz dentro dela e que derrotaria a escuridão quando ela despertasse. Quando começamos a receber as primeiras notícias do que se passava em Kallys, o nosso Dragão voltou às estrelas depois de anos a treinar Íris para o seu propósito. E, por isso, lhe estamos agradecidos. – Um momento de silêncio percorreu todos os Sábios.
Com um olhar apreensivo, Gregório devolveu um suave sorriso à jovem mulher.
- Tudo o que tem um começo, tem um fim. E todo o mal acaba por ter o seu contraposto no bem, não é verdade, Vossa Majestade? – Soou a voz de Íris, mirando César. – Por isso, aquando da vossa batalha contra Lázarus, irei acompanhar-vos.
Assim foi decidido.
No dia seguinte, César e a sua comitiva, juntamente com Íris e um pequeno grupo de Sábios, dirigiram-se a terra.
Várias batalhas foram travadas.
E foi no meio de escombros, corpos despedaçados e vozes em agonia, que a guerreira descobriu algo que mudaria a sua batalha contra Lázarus.
- Não entendo o porquê de ele ter desaparecido. – Confessou César numa noite, após receber os relatos dos seus generais e de se juntar à guerreira, que o fascinava a cada dia que passava, para um parco jantar.
Íris olhou-o por entre as chamas da fogueira que os aquecia. Havia algo no seu olhar azul que a puxava na sua direcção. Aprendia algo novo sobre ele todos os dias. Kallys tinha sorte em ter um soberano como César.
- O Grande Dragão contou-me que o peso da escuridão no corpo humano de Lázarus estava a quebrá-lo. Por isso, ele decidiu refugiar-se, sarar, para voltar com mais forças.
- E é isso que vais fazer quando o encontrares em batalha? Quebrá-lo?
Íris voltou o olhar para o chão, não respondendo, o que deixou César inquieto.
O jovem rei sabia que havia algo que nem ela ou os Sábios lhe estavam a dizer. Algo que fazia com que ela se afastasse de cada vez que ele se aproximava, algo que a fazia cerrar fileiras em seu redor quando pensava que poderiam ter um futuro juntos quando Lázarus fosse derrotado.
Algumas semanas se passaram e a violenta batalha parecia não ter fim.
Uma força diferente fez-se sentir no campo de batalha. César desembaraçou-se de um ser de pele escamada e sangrenta e olhou em redor.
O seu olhar claro encontrou um homem vestido de negro que parecia encontrar-se em transe, fitando um outro ponto da batalha. O guerreiro seguiu o seu olhar e encontrou Íris, encurralada entre dois demónios guerreiros.
Tudo aconteceu num instante. Quando César voltou o olhar para Lázarus, este ergueu o seu bastão e uma força percorreu a distância.
O guerreiro correu e gritou. Quando Íris compreendeu o que estava a acontecer, já César a empurrava fora do alcance do ataque de Lázarus, fazendo com que os dois caíssem na terra lamacenta.
Quando a força invisível desapareceu, o jovem rei fitou-a, assombrado. Porém, em vez de receber um agradecimento, recebeu um safanão. O que Íris sentia por ele naquele momento não se comparava com a surpresa de finalmente Lázarus ter saído do seu esconderijo em pleno campo de batalha.
- O que pensas que estás a fazer, César?!
Os dois entraram na tenda reservada à guerreira depois da reunião com os generais e dos demónios terem dispersado após o desaparecimento do seu mestre. César seguira-a, não compreendendo a sua fúria.
- O que… Ele ia matar-te, Íris!
- E depois?!
- E depois?! Estás louca? Achas que vou deixar que ele te mate? – Frustrado, César passou a sua mão pelo cabelo ao ver a expressão de raiva desvanecer para algo mais passivo no rosto de Íris. – Espera… Isso… Esse é o teu destino, Íris?
- O que pensavas que eu ia fazer, César? Viver? Luz e escuridão não funcionam assim. Para a escuridão desaparecer, a luz tem de ser sacrificada.
O guerreiro deu dois passos na direcção dela, agarrando os seus braços. Algo dentro dele transportava-o para um lugar sombrio, onde o medo imperava. Queria abaná-la para a fazer ver o que sentia por ela. Ou apertá-la contra si e nunca mais deixá-la colocar um pé num campo de batalha.
- Não estou preparado para te perder. – César deixou escapar as palavras trémulas, encostando a sua testa à dela, cerrando os olhos como se aquilo se tratasse apenas de um sonho. – Ainda agora te encontrei, Íris.
- É o meu destino. – Ouviu-a dizer enquanto a mão suave dela acariciava o seu rosto.
Ficaram em silêncio durante um momento e quando César voltou a abrir os olhos, os de Íris encontravam-se reluzentes de lágrimas que lentamente desciam pelo seu rosto cândido.
O tempo correu lentamente quando os lábios se tocaram e as mãos deambularam pelas curvas dos corpos, sentindo a pele cálida. Rei e guerreira perderam-se no sabor do primeiro beijo, do primeiro toque, deixando-se levar pelos seus sentimentos pela primeira vez em semanas.
No dia seguinte, mal o sol se levantou e espreitou por uma brecha das nuvens cerradas e escuras, que traduziam a tristeza de Íris, a guerreira deixou a segurança dos braços do seu rei.
Vestiu a sua armadura e laçou o cinto com a sua espada em redor da cintura. Tudo isto, sempre com o olhar esverdeado em César. Tentava capturar tudo o que lhe pertencia, o seu rosto, o seu olhar claro e sério mas atrevido.
Com um suspiro, deixou um leve beijo na testa do seu rei guerreiro. Nem um gesto, nem um som. Íris exercera a sua magia bem. Ele não acordaria até tudo ter terminado. Sabia que, se ele acordasse, a impediria de cumprir o seu destino.
Lentamente, a dama guerreira percorreu os corredores de tendas e soldados sonolentos que a olhavam com curiosidade.
 Existe uma força, algo que transforma e enaltece, que combate os medos e a escuridão.” A voz do seu Dragão mestre fez-se ouvir na sua cabeça.
Os seus passos deixavam a sua marca na terra enlameada, aproximando-se do local onde o Poder Negro imperava.
- Não vos esperava tão cedo, guerreira da Luz. – O tom de voz de Lázarus era baixo e irónico, repleto de veneno à medida que saía do seu esconderijo por entre as árvores.
- Deixai-vos de vis palavras, Demónio. – Íris cuspiu as palavras com repugnância, fitando a forma encarquilhada do homem. Sentia a escuridão que emanava dele.
- Vossa Majestade, Rei César, não veio consigo? Queria felicitá-lo pelas imensas vitórias. – Lázarus moveu-se em redor dela como se a estivesse a ler.
- Não vais aproximar-te dele, demónio!Nunca mais vais magoar alguém. – Toda ela tremia de fúria.
Ao dizer estas palavras, o olhar verde da guerreira reparou na maneira como Lázarus agarrou o seu bastão de madeira escurecida. Sabia que o enfurecera.
Foi então que algo despertou dentro de si. A sua magia reagiu ao movimento fluído do bastão. E quando a sombra que escapou se dirigiu ao acampamento, esta foi aprisionada pelo clarão que emanou do corpo da guerreira.
Frio e calor. Gelo e fogo. Escuridão e luz.
Os dois espectros chocaram, criando uma onda de magia que percorreu as terras de Kallys, inundando cada recanto de vida.
Dias deram lugar a semanas, estas a meses e os anos foram passando.
A escuridão tinha desaparecido e o reino vivia sob o olhar atento da luz.
Um riso chamou a atenção de César. O jovem rei tornara-se melancólico no momento em que a onda de magia desaparecera e a poeira assentara, acordando-o para a realidade de que perdera aquela que amara. Agora, ele já não era o jovem rei mas o sábio governante de Kallys que atravessava os seus anos mais prósperos e o pai cauteloso que observava a sua filha mais nova a ter o seu primeiro treino com armas.
César tinha demorado o seu tempo. A lembrança de Íris sempre no recanto da sua memória era um pensamento doloroso, mas ele acabara por encontrar a sua rainha. Agora, a sua pequena Íris relembrava-o quem olhava por Kallys.
E a memória do que a dama guerreira fizera pelo seu amor estaria para sempre gravada nos corações dos seus habitantes, transportando-a através dos tempos.

                                                                                       Fim


E também aqui fica uma citação que encontrei pouco depois de ter enviado o texto para a editora que parece ter sido retirada directamente da história:

“Eu sei que fomos feitos um para o outro, da mesma forma que sei que ficaremos separados. Mesmo assim, o teu nome irá sempre ressoar no bombear do meu coração.”
 Connie Cernik

Espero que tenham gostado, digam-me o que pensam do texto.

Até ao próximo post!

A vossa sussurradora...

Ps: Imagem Google.

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